Dreykon Fernandes é graduado em Letras (Língua Portuguesa e Literaturas em Língua Portuguesa) pela Universidade Federal do Espírito Santo e integrante do grupo de pesquisa LIMES – Fronteiras interdisciplinares da Antiguidade e suas representações.

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Para que servem notas de rodapé a um poema épico? o exemplo de O Uraguay (1769), de Basílio da Gama

by Dreykon Fernandes Nascimento

O Uraguay (1769), épica luso-brasileira do poeta Basílio da Gama, tem por argumento histórico as expedições ibéricas contra comunidades jesuíticas no Brasil, chamadas Sete Povos das Missões. Das épicas produzidas no Brasil, o que nos chama a atenção em O Uraguay é que ela inaugura as notas de rodapé ao texto poético feitas pelo próprio autor, só posteriormente vistas em Vila Rica (1773), de Manoel da Costa, O Desertor (1774), de Silva Alvarenga e Caramuru (1781), de Rita Durão.

(Retrato de Basílio da Gama por M. J. Garnier para a edição dos Sonetos Brasileiros, Rio de Janeiro, 189?): Wikimedia Commons, Domínio Público)

Não que anotar epopeias fosse prática incomum à época, mas era hábito que vinha dos comentários aos textos latinos, por isso visto nas épicas latinas, mais rigorosamente, nas didáticas, tais como De Sacchari Opificio (c. 1712), de Prudêncio do Amaral, circulada em manuscrito até 1780; De Rusticis Brasiliae Rebus (c. 1766-1767), de Rodrigues de Melo, circulada em manuscrito até 1781; e Brasilienses Aurifodinae, do próprio Gama, produzida entre 1760-1767, durante a sua estadia em Roma, de circulação exclusivamente manuscrita.

Não há notícia no Brasil de notação à épica de tipo heróica e escrita em vernáculo até O Uraguay. Antes, vê-se na França, com La Henriade (1723), de Voltaire, mas do latim para o vernáculo Voltaire mudou muito pouco, apenas transladando em estilo historiográfico a nota de estilo tradicionalmente didático, a fim de acomodá-la à matéria histórica de sua épica. Funcionalmente, ambas são idênticas, limitadas a explicar ou detalhar conteúdos de um verso. As notas de O Uraguay, contudo, são diferentes, pois integram indissociavelmente a função retoricamente persuasiva dos versos, como tentaremos brevemente demonstrar.

Por fugir à regra da notação tradicional, cuja função explicativa condiciona a homogeneidade na língua entre nota e verso e o uso exclusivo da prosa, as notas de O Uraguay são tanto em vernáculos, português e francês, quanto em latim, sendo algumas em versos.

[Esquerda] (Capa da 1ª impressão de O Uraguay, Lisboa, 1769): Internet Archive, Domínio Público. [Direita] (Página 24ª de O Uraguay, anotada tanto em latim quanto em português, em prosa e em poesia: Internet Archive, Domínio Público.
Concentrando-se nas latinas, contamos seis citações da épica didática Praedium Rusticum (1706), de Vanière; uma da Eneida, de Vergílio; um excerto do Evangelho de Lucas (10:1) misit illos binos e uma expressão latina post bellum auxilium. Como exemplo da integração entre nota e verso, peguemos a primeira citação a Vanière, presente na nota 48 do Canto Segundo:

 

Nescia gens nostri vivit…

… ad interiora venire

Regna vetent homines cupidos audita videndi.

 

Não apenas retirada de contexto, mas rompida a  integridade dos versos, a nota ecoa de perto a epígrafe de O Uraguay, tomada da Eneida 8.240-1:

At specus, & Caci detecta apparuit ingens

Regia, & umbrosae penitus patuere cavernae.

 

(Gravura anônima sobre a expulsão dos jesuítas, reproduzida em uma medalha cunhada a pedido do papa Clemente XIV, em 1773, e adicionada a alguns exemplares da 1ª impressão de O Uraguay: Casa de Sarmento, Domínio Público).

Ou seja, desde a epígrafe Gama relaciona a sua narrativa à libertação da Itália por Hércules, escravizada pelo tirano Caco. Porém, enquanto a manutenção da alegoria é feita mediante a associação entre D. José I e Alcides nos vv.3.240-1 do poema

 

Genio de Alcides, que de negros monstros

Despeja o Mundo, e enxuga o pranto á patria

 

a associação específica entre a Companhia de Jesus e Caco é feita somente na nota. Ou seja, para além do caráter explicativo, as notas em O Uraguay acrescentam elementos interpretativos importantes, e ajudam na encenação, página a página, das duas forças em disputa na obra, a coroa portuguesa e a Companhia de Jesus, retoricamente aproveitada em uma organização que expõe aos olhos do leitor a rixa entre um discurso ilustrado, encabeçado nos versos em vernáculo, e um discurso jesuítico, pisado nas notas em latim.

 

(Alegoria à estátua equestre de D. José I. A imortalidade, na figura de um grande anjo, corôa a Lusitânia, personificada por um homem, que esmaga os Jesuítas representados por serpentes. Gravura por Eleutério Manuel de Barros: Casa de Sarmento, Domínio Público).

Além disso, a nota mantém toda a proporção vergiliana do epos de Gama, já que o trecho do Praedium Rusticum passa a, sem dúvidas, ecoar a Eneida 8.240-1, embora, originalmente, os versos de Vanière não tenham nada de Caco, pois os indígenas não temiam estrangeiros (nec ab hoste tuetur oras), nem lhes eram hostis (amice hospitio excipiant), nem viviam escondidos, mas próximos às praias (Appositas struxere domos ad littora), e entre si proibiam homens cobiçosos (vetent homines cupidos). É Gama quem ressignifica os versos latinos ao integrá-los à semântica de seu verso vernacular.

 

Vistas assim, percebemos como a exclusão das notas durante toda a recepção posterior de O Uraguay, seja em edições próprias, seja em antologias, elimina camadas interpretativas importantes que o autor articula ante os olhos do leitor, além de apagar a dinâmica multilíngue entre vernáculos e latim do ambiente colonial americano. E, quando são lembradas pelas edições modernas, são sempre empurradas para o fim do livro ou dos cantos, rompendo o circuito semântico proposto por Gama, aproveitado da formatação de impressão comum ao contexto da Primeira Modernidade, que as dispõe na mesma página que os versos, em favor de uma leitura moderna pós-romântica e anacrônica do que sejam e para que servem as notas.

(Hércules esmaga o flamívomo Caco, gravura de Hans Sebald Beham, 1545: Wikimedia Commons, Domínio Público).