Ruth dos Santos Silva: Formada em Letras Português e Italiano pela Universidade Federal do Espírito Santo. Mestranda em Literatura clássica pela mesma universidade, com interesse pelas letras neolatinas na América Portuguesa. Assistente editorial da Revista Contexto da Ufes. Membra do grupo de pesquisa Limes – Fronteiras Interdisciplinares da Antiguidade e suas representações.
— For English version see A. Vazquez’s translation: Divine Representations of King João V of Portugal
Entre Febo e Deus: a representação de D. João V na América Portuguesa
Ruth dos Santos Silva
Talvez seja surpreendente para alguns saber que as comunidades que foram se estabelecendo, entre os séculos XVI e XVIII, nas terras da América, colonizadas pelos Europeus, não eram monolíngues. Ao contrário, o plurilinguismo era a feição linguística esperada de uma população também essencialmente múltipla. Entre os diversos vernáculos, encontra-se também o latim como idioma não só da religião, mas também da educação, da comunicação e da arte. As construções das Histórias da Literatura, no século XIX, que buscavam a afirmação de uma língua nacional como modo de sustentação da própria formação da nação, apagaram a presença das demais línguas, inclusive o latim, no panorama da produção letrada das Américas. Um movimento, porém, que se inicia no século XX e se reforça mais contemporaneamente, tem recuperado obras multilíngues produzidas naquele período, e que descortinam outra realidade, em que os mesmos autores liam e escreviam em mais de um idioma, estabelecendo um diálogo que se dá em várias línguas.
Dentre essas, destacamos aqui a Relação Panegyrica das Honras Funeraes, às memórias do muito alto, e muito poderoso senhor Rey Fidelissimo D. João V, uma obra produzida no Brasil no século XVIII, de elogio fúnebre em louvor a D. João V, rei de Portugal (1707-1750). A Relação Panegyrica é uma obra multilíngue – contendo poemas escritos em português, latim e espanhol – e multiautoral. Embora haja, nesta obra, variações de línguas e de formas poéticas, a matéria principal é descrever o caráter do rei morto e o lamento dos luso-brasileiros. Para fazer isso, os autores recuperam gêneros retóricos e poéticos da Antiguidade, como determinava o fazer literário da época, mas dentro do decoro do seu próprio tempo. Um exemplo disso é a escolha das deidades que são usadas para associar a figura de D. João V a um ser divino. Ainda que essa comparação pareça exagerada, e mesmo de mau gosto para nós hoje, do ponto de vista retórico para os séculos passados, essa aproximação era encorajada e prescrita pelos manuais de composição.
Nos poemas latinos, em especial os epigramas, Febo é a divindade utilizada na associação ao rei de Portugal. A morte de Dom João V é representada como o pôr do sol, o que, consequentemente, pressupõe uma escuridão que toma todo o Império Português: a ausência do rei é como Febo dissipando suas luzes. Ao mesmo tempo em que a aproximação do monarca a Febo é feita de forma a igualar essas figuras em certo poder e força, há também o reconhecimento da mortalidade de Dom João V, isto é, de sua condição humana. Esse tipo de comparação aparece em muitos textos antigos, tais como os de Plínio que, em seu Panegírico a Trajano, também atribui certa divindade ao imperador e reconhece sua condição humana.
A comparação entre Febo e D. João V, denominando o monarca como o sol lusitano, é, ainda, uma alusão à metáfora do sol como poder régio. Isso porque o reinado de D. João V foi marcado por grandes inovações, possibilitadas pela descoberta do ouro nas terras de Minas Gerais. Além disso, o governante incentivou a busca de conhecimento e de ideias filosóficas que circulavam para além das fronteiras de Portugal, fazendo com que o seu reinado fosse conhecido tanto pela exuberância do ouro como também pelo caráter intelectual, o que provavelmente leva os autores da Relação Panegyrica a demarcarem essa ligação entre D. João e o sol.
Essa aproximação não se restringe às obras latinas: nos poemas escritos em português, a figura divina, mas dessa vez o Deus cristão, é também aproximada à de Dom João V. A diferença, no entanto, é que o rei não mais é igual em força e poder a Deus, porque, pela filosofia cristã, apenas Deus é o soberano. Isso, contudo, não enfraquece a imagem de Dom João V, pois a comparação do rei à imagem religiosa cristã é feita por meio da graça alcançada pelo monarca, que ascendeu à morada de Cristo e pôde gozar de sua companhia eternamente. Se, por um lado, a comparação do rei com Febo sustentou a ideia do monarca como o sol lusitano aludindo ao poder régio de Dom João V, por outro, aproximar o rei à figura de Deus é denotar que o governante teve uma boa morte marcada pela retidão do exercício de suas virtudes em vida. Nos poemas escritos em português, é evidente a construção da imagem de Dom João V como aquele cuja vida cristã, representada pelos seus atos antes de sua morte, proporcionou ao rei viver eternamente na companhia de Deus, tendo sua glória terrestre acabado, mas foi conquistada a glória divina. Assim, a aproximação do monarca lusitano a Deus ressalta a figura de um rei virtuoso, instrumento divino em favor dos portugueses, cujas ações garantiram-lhe a bonança.
A adequação das divindades nos poemas em latim e em português é apenas um exemplo de como a recepção da Antiguidade no conjunto da obra não é somente uma demonstração de competência linguística, mas também uma performance retórica. A produção letrada das Américas apropriava-se dos elementos retóricos tradicionais, adaptados ao seu momento e lugar; assim, os súditos da Coroa Portuguesa na América mostram, com sua obra, que detêm erudição e conhecimento suficientes para produzir uma obra adequada, multilíngue, agradável à corte portuguesa.